O que se pode dizer do Caminho de Santiago? Nada, não se pode dizer nada. Você tem que fazê-lo para senti-lo. O Caminho de Santiago como tal não existe, as pessoas podem iniciá-lo onde quiser, e até terminá-lo também onde eles queiram. Porque nosso Caminho ha de acabar em Santiago? Para que alguém nos dê um papel (a “Compostela”)? O Caminho leva-se dentro de você, não são necessários nenhuns papéis.
Dizem que há tantos Caminhos como pessoas, mas por causa da infraestrutura, é “mais fácil” fazer o chamado “Caminho Francês”.
No meu caso aqui tive a primeira duvida: onde começar? Por “conforto” decidi, como a maioria dos espanhóis, iniciá-lo em Roncesvalles: não tem que atravessar a França, e a etapa do Sant Jean Pied de Port (SJPDP) a Roncesvalles é muito difícil e perigosa com mau tempo, já tem havido várias mortes nesta etapa. Mas repito, não é necessário nem obrigatório iniciá-lo em um desses dois lugares. Aqueles que procuram só a “Compostela” podem iniciar o Caminho de Santiago (muitos espanhóis fazem isso) em Sárria, a pouco mais de 100 km de Santiago. Se eu vier do outro lado do mundo (Brasil, por exemplo), não começaria em SJPDP, por causa da dureza, perigo, e pela possibilidade de ter uma lesão que em breve irá forçar você abandonar. Eu começaria mais perto de Santiago (Pamplona, Logroño, Burgos) e levaria em conta que o normal é fazer etapas de 20 a 25 km por dia, e seria bom pensar que além disso vai ser preciso ter algum dia de “descanso” (por qualquer motivo: doença, gestões, repouso, pequenos ferimentos…).
O meu Caminho de Santiago durou 13 dias (etapas), e mais 2 dias de deslocamento (Barcelona-Roncesvalles e Burgos-Barcelona). Eu tive que terminar em Burgos por causa de uma lesão. Minha ideia inicial era terminar 3 etapas depois de Burgos (por causa do meu trabalho), portanto, não me afetou muito minha retirada súbita. Então eu fui de Roncesvalles a Burgos, cerca de 260 km, cerca de um terço do Caminho Francês.
Uma lesão? Foi devido à falta de treinamento? Não. Minha preparação física era muito boa. Eu tinha treinado mais que os quase 800 km do Caminho Francês, dos quais mais de 400 km foram com a mochila nas costas. Não, não foi uma falta de treinamento. Simplesmente, pode acontecer. No meu caso, uma tendinite numa perna. Levar 10-12 quilos nas costas, caminhando de 20 a 25 km cada dia, ou seja, cerca de 6 ou 7 horas por dia, e todos os dias, não é um passeio. É algo muito difícil, e o corpo pode dizer: chega. Eu vivo em Espanha, e eu posso voltar em qualquer momento. Eu entendo que para uma pessoa que vem do Brasil, é muito difícil ter que abandonar, mas às vezes você tem que fazê-lo. Eu recomendo assistir a um documentário no Youtube chamado “Três no Caminho”. Eu gostei muito dele, e lá a gente pode ver os problemas que teve uma menina brasileira por causa de uma lesão.
O Caminho de Santiago é muito duro. Não é só caminhar. Muitos fatores estão envolvidos. O mais fundamental é a “intendência”. Caminhar é fácil, divertido e gratificante, mas não só é caminhar no Caminho. Uma pessoa está 24 horas, dia após dia, no Caminho de Santiago. Você tem que resolver muitos problemas, que não são habituais na sua vida normal. Você tem que procurar alojamento, comer, lavar a roupa, tomar banho, descansar, comprar, gerir o dinheiro, contato com a família, com amigos… A grande vantagem é que no Caminho de Santiago tudo está simplificado ao mínimo. Nossa vida vai de noite para manhã, de ser complicada a atender às necessidades básicas apenas, levando acima de nós apenas o que é necessário para fazê-lo. A mentalidade das pessoas já muda apenas por esse motivo. Nossas vidas complicadas se tornam vidas simples. Esta é a primeira coisa que se sente no Caminho de Santiago. E rapidamente percebemos que, na realidade, não precisamos mais.
O que vamos encontrar no Caminho de Santiago? A vida mesma. Alegrias, penalidades, emoções, decepções, mas há algo que você não sabe o que é, mas liga-te ao Caminho. Nem todas as pessoas percebem (tem muitos “turigrinos”, os turistas, porque “está na moda”), mas sim a maioria. É um sentimento que não pode ser explicado, simplesmente está lá, e com certeza cada pessoa o percebe de forma diferente. Mas quase todos ficam presos dele.
No meu caso, enquanto no final correu mal (a última etapa que eu fiz, acima de tudo), só estou pensando no ano que vem a seguir de Burgos para Leon (pelo menos). Por trabalho não posso fazer todo o Caminho de Santiago seguido, mas só penso em voltar. O Caminho de Santiago me pegou? Sim, e eu gosto que seja assim! Tem sido uma experiência maravilhosa. Não tenho crenças religiosas embora profundamente respeito a aqueles que as têm. Igrejas e catedrais para mim são fantásticas. Mas eu não tenho nenhum sentimento religioso ou existencial. Não sei o que é, mas é algo especial, algo que não pode ser explicado (eu pelo menos não posso). Cada um deve sentir o que o Caminho de Santiago lhe dá.
Minha experiência prática no Caminho de Santiago poderia se detalhar da seguinte maneira:
As etapas geralmente não são difíceis, mas há algumas que são. Mesmo nas etapas fáceis podemos encontrar um trecho complicado. Também deve se ter em conta que existem etapas difíceis psicologicamente, não fisicamente. No meu caso só posso considerar difícil o final da etapa de Roncesvalles-Zubiri (os últimos 15 quilômetros). As etapas seguintes tinham alguns trechos complicados como a subida e descida do Alto do Perdão (na saída de Pamplona), ou a travessia dos Montes de Oca. Mas, na realidade, o mais difícil para mim, deixando de lado que naquele momento eu estava muito machucado, foi entrar em Burgos. É algo mais de 15 quilômetros (absolutamente planos) inacabáveis, por asfalto, passando por parques industriais, estradas, ruas, cruzamentos com semáforos, cruzamentos sem semáforos, atravessando a cidade inteira de Burgos porque o Albergue esta no outro lado da cidade… Todas as pessoas chegavam ao Albergue em muito mau estado. Há uma entrada muito mais agradável a Burgos, mas as “setas amarelas” levam pelo asfalto.
Etapas de qualquer tamanho podem ser feitas, mas acho melhor (ignorando o que os guias dizem) eles sempre são entre 20 e 25 km. Se a etapa marcada no guia tem entre 20 e 25, perfeito, mas se marca 30 km o mais, porque devemos fazer o que diz o guia? Haverá pessoas às que podem parecer muito (20 a 25 km), e outros que lhes pode parecer pouco, mas em minha opinião é a distância certa. O que eu considero errado é seguir os passos exatamente como eles são marcados nos guias. Melhor é fazer nosso próprio planejamento. E, sempre que for possível, é melhor iniciar/terminar as etapas em cidades que nos dizem os guias, porque é onde, geralmente, há mais serviços. Apesar de estar mais lotados, claro.
Que época do ano é melhor para fazê-lo? Aqui é que eu tenho aprendido muito. Se você puder, é melhor faze-lo no final de março/início de abril, ou no final de outubro/início de novembro. Isto me disseram todas as pessoas que “vivem do Caminho de Santiago “: Bares, Restaurantes, Albergues… Você vai ter bom tempo e não é lotado.
Albergues. Cada Albergue é um mundo diferente dos outros. Normalmente, os Privados tem mais conforto e são mais caros do que os Públicos. Mas existem Públicos que também são muito bons. Conheci pessoas que não iam ficar em Albergues, mas sempre em Hotéis ou Pensões (casas de hóspedes). Alguém pode julgá-los / critica-los? Acho que não, cada um faz o seu Caminho de Santiago. Eu mesmo fui a 2 Hotéis e 1 Pensão (e 11 Albergues). Por quê? Porque às vezes eu necessitava volver a sentir a sensação de “intimidade”. Não existe privacidade nos Albergues. Alojar-se em Albergues implica grandes sacrifícios por ter que renunciar de fato a quase todos os confortos aos que estamos acostumados.
Os Albergues abrem entre às 12h e 13h, mas todos fecham às 22h. Albergues costumam ter beliches. Eu caí uma noite da cama. Felizmente eu estava na cama de abaixo do beliche. Mas, atenção, nem sempre tem paradas nas camas do acima do beliche para evitar quedas. Para “idosos” é sempre mais prático ter a cama de baixo, mas às vezes não é possível, especialmente se não somos os primeiros a chegar ao Albergue. Importante: nos Albergues você não pode levar colocadas as botas de caminhada, tem que ir com os pés descalços, com apenas meias, ou com outro calçado.
É muito difícil de perder-se no Caminho de Santiago, mas você tem que estar sempre atento. Os problemas ocorrem na etapa da SJPDP do Caminho quando há muito nevoeiro e não se consegue ver nada. Em geral é apenas seguir as “setas amarelas”. É verdade que há alguns trechos onde não tem boas indicações, mas geralmente não há nenhum problema.
É melhor andar sozinho. Eu fiz sozinho o Caminho de Santiago, como a maioria das pessoas. Mas, mesmo se você for com outras pessoas, é melhor que cada um ande no seu próprio ritmo e no final da etapa se encontrar com o grupo.
Tecnologia/Eletrônicos. O celular é essencial. Eu também levei minha câmera (eu tirei 600 fotos) porque eu gosto mais de tirar fotos com a câmara do que com o celular, mas também foi mais peso (a minha câmara pesa 400gr) que eu tive que carregar. Nos Albergues, existem geralmente poucos plugues para tantos peregrinos tentando recarregar seus dispositivos eletrônicos. É bom levar um “ladrão”.
Guias. Acho que é melhor não levar nenhuma guia ao Caminho. Você pode comprar a que você gostar mais, estudar em casa (antes de ir para o Caminho), logo digitalizar as etapas em PDF e com o celular você pode lê-las. Eu levei (além das etapas digitalizadas) o livro de Mapas (não a guia) do Caminho de John Brierley. Este livro não pesa nada, e foi muito útil.
Peso. Eu não concordo com o que é explicado na Internet. É impossível levar uma mochila que pesa 10% do nosso peso (ou menos), nenhum peregrino levava. Uma vez dito isto, o melhor é levar o menor número de coisas possíveis. Se nos esquecemos de levar algo, você sempre pode comprar no Caminho de Santiago. Na Internet existem dicas de coisas para levar. Cada um, logo, tem de fazer sua própria lista. Quanto a roupa, eu levei 3 jogos, 1 no corpo e dois de reserva.
Equipamento. Para mim foi uma questão muito importante, e eu gastei muito dinheiro para levar o melhor material possível, dentro do meu orçamento. As roupas que eu levava eram “as mais baratas” (Quechua), exceto a calça, mas o resto de coisas que eu levei, incluindo roupas de chuva, eram “de melhor qualidade” (atenção, Quechua também tem grande qualidade). Levei um “polar” (prenda de abrigo) Columbia para o frio, calças e polainas Trangoworld, casaco de chuva Arcteryx Alpha SL Jacket (Goretex Paclite), sapatos (botas) The North Face (com Goretex), meias Lorpen modelo Primavera (levei 3), mochila Osprey Krestel 38 (inclui a capa para a chuva), e saco de dormir Millet Baikal 750. Também levei uma sobre calça para chuva de Quechua. No Caminho as mochilas mais abundantes foram as Quechua e depois as Osprey e as Deuter. Quanto menor a mochila, melhor, mas deve ter um tamanho que permita levar tudo o que precisar, um bom tamanho geralmente é de 35 a 45 litros. Só tive um dia de chuva pesada, mas como não tinha lama eu não usei as polainas, que foram muito úteis para mim nos meus treinos. O casaco de chuva Goretex Paclite foi fantástico, e os sapatos (botas) com Goretex, muito bons, fizeram-me não entrar água nos pés. Uma senhora que ia comigo teve os pés cheios de água por não usar Goretex. As botas dela custaram 140 euros, as minhas comprei por 100 Euros. O Goretex é muito importante para não ter os pés molhados. No entanto, se o caminho é feito no verão, talvez o Goretex dê muito calor. Para o chuveiro levei um traje de banho, toalha Quechua (quase todos os peregrinos usavam, e é muito boa) e umas “sapatilhas caranguejeiras”.
Coisas essenciais para levar. Cada pessoa terá uma opinião diferente. Além das coisas típicas que são recomendadas e que levei, como um canivete suíço, eu levei também outros materiais que me ajudaram muito e que se destacam aqui: fronha (muitos Albergues não tem), luvas Quechua, óculos de sol, chapéu (foi bom para calor e frio), ganchos (muito úteis no chuveiro), mosquetões, pequeno espelho (não pesa nada nem ocupa espaço e ele foi muito útil para controlar bolhas, eu tive uma), uma “ferramenta” para comer (vendem na loja “Caminoteca” de Pamplona e no seu site de Internet), luz frontal (de preferência com luz vermelha), e uma peça de abrigo para cobrir o colo.
No entanto não levei “paus para caminhar”. Quase todos os peregrinos usavam, um ou deus paus, mas nos meus treinos eu não estava confortável com eles e não os levei. Também não levei esteira pequena. Mas sim levei o saco de dormir, para mim é essencial, porque em muitos Albergues só tinham um colchão sem lençóis. Não precisei tampos (embora eu os levei) para os roncos (e havia muitos) porque o cansaço fazia eu dormir imediatamente. Também me foram muito úteis os prendedores de roupa (existem Albergues que não têm), alfinetes de segurança, sacos de pano (não de plástico porque fazem barulho) para colocar roupas, pequenos sacos selados para levar coisas de asseio, e também capas para a Credencial, dinheiro, documentos, cartão VISA,…
No botequim que levei tinha garrafas uni doses de Betadine (anti-séptico), o Compeed para as bolhas tive que comprar no Caminho, material para costurar, Paracetamol, Vaselina, Ibuprofeno, Tiritas, vendas, bandagem adesiva,… A pesar de tudo o botequim era muito pequeno.
Meteorologia. Eu fui em maio de 2015. Primavera em Espanha é altamente variável e você pode encontrar qualquer coisa. E de fato foi. Tive uma semana de extraordinário calor para esta época do ano (35 ° C) e uma semana de chuva e frio (5 ° C Burgos). Dependendo da época do ano que você faça o Caminho de Santiago tem que preparar diferentes tipos de roupas e material. No verão, praticamente não chove, deve levar Goretex? Também não seria necessário usar calças compridas, eu levei porque era primavera. Senso comum (e outros tipos de apoio, internet) irão indicar-nos que carregar, e o que podemos esperar encontrar-nos sobre temperaturas e precipitações.
Falamos de dinheiro. O Caminho é caro ou barato? Não há nenhuma resposta simples, depende de cada pessoa e de seu nível econômico e de “sacrifício”. Para uma pessoa que vai todos os dias para Hotéis/Pensões vai ser caro, mas se essa pessoa tem um nível econômico elevado, talvez seja barato. E se uma pessoa faz apenas uma semana do Caminho ele não pode gastar muito. Em minha opinião, você pode gastar muito dinheiro se faz todo o Caminho. Um dia “típico” do meu Caminho foi: tomava um pequeno-almoço “simples” ao partir do Albergue (comida e bebida que tinha comprado no dia anterior) porque quando você sair do Albergue todos os Bares costumam estar fechados, na metade da manhã eu tomava um café da manhã “forte” num Bar. Ficava em Albergues Privados (aproximadamente 10 a 15 Euros). Lavava roupas na máquina de lavar. Comia o “Menu” habitual que é feito em Bares/Restaurantes em Espanha (cerca de 10 Euros), e jantava algo leve (fruta, iogurte) comprado em lojas ou supermercados. No meu caso, esta despesa “normal” fez com que todos os dias eu gastava entre 30 e 40 Euros por dia. Havia dias que eu gastei mais, e dias nos que eu gastei menos porque também fui para Albergues Públicos. Qualquer pessoa pode evitar muitas despesas que eu fiz. Você pode por exemplo: alojar-se em Albergues Públicos em vez de Privados, preparar o seu almoço (e o jantar) em vez de comer num Restaurante, tomar pequeno-almoço preparado por você em vez de ir a um Bar, lavar a roupa à mão,… Desta forma o Caminho será, sem dúvida, muito mais barato. Se eu tivesse feito todo o Caminho tinha tomado de 35 a 40 dias, ou seja, mais ou menos tinha gastado entre 1.000 e 1.500 Euros, e a este montante deve se adicionar as despesas de aviões, trens, autocarros, táxis… usados para nossos deslocamentos. É caro ou barato? Cada pessoa terá uma opinião diferente.
Buen Camino!
Miguel Torrijos